2012/08/01
arles, ou coisa parecida.
não sabia há quanto tempo ali se encontrava. saiu do seu torpor pelo gesto brusco da súbita pressão dos dedos, os seus dedos, que agora reconhecia seus, na garrafa de cerveja que segurava na mão direita. bebeu longamente. ainda estava fresca, apesar da sensação de a ter comprado noutra cidade e noutro dia.
sentou-me muito direito na pequena cadeira de plástico aparafusada àquilo que tinha sido a base de um cavalo de carrossel. era da sombra de um carrossel que tentava reconhecer o local onde não tinha consciência de ter chegado.
à sua esquerda estendia-se uma praia pouco acolhedora. naquela luz de fim de tarde, as sombras alongadas dos montículos de areia suja pareciam orifícios para outra dimensão, como se uma espécie de membrana metálica se estendesse até à linha da pastosa, suave e cinzenta ondulação. elevava-se da praia algo que poderia ser confundido com areia fina, criando uma neblina que envolvia todo o espaço circundante.
sentiu as costas encharcadas de suor quando se voltou para o lado esquerdo no seu desconfortável assento - "isto foi pensado para crianças" - e acabou a cerveja. todos os movimentos lhe eram vagamente dolorosos.
atirou a garrafa vazia para o chão de poeira, nas imediações do carrossel. o ruído atraiu imediatamente cerca de uma dezena de crianças de idade indeterminada. tez escura e roupas de adulto, muitos números acima... o ruído da garrafa propriamente dito não foi por ele ouvido. os sons do exterior, todos os sons de todo o espaço exposto ao sol, chegavam-lhe aos ouvidos muitíssimo abafados, como se a sombra fosse um estúdio de rádio.
- vêm em ninhadas.
a voz vinha de alguém no assento do lado. tentou olhar na direcção da voz mas uma rigidez que até então não se tinha manifestado impediu essa movimentação com naturalidade. rodou para a direita em pequenos movimentos, cumprindo intermitentemente um quarto de rotação. finalmente viu um homem jovem, com bigode e cabelo liso, que, tal como ele, parecia estar a orientar-se em relação ao exterior do carrossel. fixou a atenção no lobo da orelha esquerda do homem. um corte com uma cicatriz recente quase o separava da orelha, criando, em quem observava, uma quase necessidade de completar este processo de separação.
"todos estes cabrões falam francês e são ciganos". esta ideia surge-lhe no espírito repentinamente e ele apercebeu-se imediatamente que não eram bem ciganos, nem era o francês de que ele se recordava que era por ali falado.
- há quem queira fazer uma limpeza, como eles dizem, a isto tudo - disse, em jeito de resposta. surpreendentemente, parecia fazer-se entender com uma fluência de que não suspeitava.
o homem permaneceu imóvel, não exibindo qualquer sinal de que o tivesse ouvido. Após uns segundos, no entanto, escarrou para o local onde antes tinha caído a garrafa e respondeu:
- eles não querem. mesmo que quisessem, não conseguiriam.
- não digo que não. - concluiu, enquanto focava o olhar na base da muralha de pedra.
quase todos os homens se vestiam de preto e falavam com entusiasmo. havia-os em aparente regresso da praia, no grande espaço aberto entre o carrossel e a parede de pedra que, não sendo uma muralha, era antes a fachada ligeiramente curva de uma grande estrutura em pedra e, por fim, em pequenos círculos junto à parede. "isto parece um coliseu romano" - pensou - "muito parecido com arles. pelo menos é parecido com um filme que se dizia filmado em arles". mas a relação deste local com a imagem de arles era mais evocativa do que...
havia, na parte superior da estrutura, qualquer coisa de anto, de muito antigo. "romano, quase de certeza". a base era quase monolítica. "um circo romano sobre um castelo templário". assinalou a incongruência histórica mas a descrição pareceu-lhe suficientemente precisa. "pedra antiga, aparelhada por gente antiga".
os contrafortes criavam recantos onde o vento tinha acumulado lixo de todos os tipos e grupos de mulheres acocoradas, não, sentadas em pequenos bancos, e que estendiam os braços à sua frente, quase na horizontal, na direcção do centro do grupo, como se aquecessem as mãos em fogueiras inexistentes.
havia lixo espalhado por todo o espaço e em grandes quantidades. ocasionalmente, ressequidos rótulos de garrafas de detergente e de bebidas alcoólicas rodopiavam no ar. pequenas fitas de papel branco espalhavam pelo largo aquilo que haviam sido documentos oficiais.
foi o tapete de fragmentos de plástico brilhante, imitação de metal cromado, que o fizeram aperceber-se das pistolas. eram pistolas de plástico, deste plástico brilhante. eram transportadas por rapazes de uns 12 ou 13 anos em grandes feixes atados com arames.
todas as pessoas do sexo masculino que podia ver ou tinham uma pistola deste tipo ou pretendiam adquirir uma a um dos rapazes. gesticulavam expansivamente, numa atitude de um regatear exageradamente cénico.
havia um espaço em semi-círculo contíguo à muralha em que alguns objectos que se destacavam do restante lixo pelas suas maiores dimensões, aparentemente animados por súbita vida própria, davam repentinas piruetas pelo ar. garrafas de vidro pareciam, àquela distância, autoimplodir-se.
no espírito do nosso observador, a ligação entre as pistolas de imitação, de aspecto fágil e pouco elaborado, visivelmente baratas, e esta espécie de dança de lixo não foi imediata.
com uma focagem do olhar tornou-se evidente: as pistolas eram a causa da agitação do lixo. os homens apontavam bruscamente, com o braço flectido. disparavam em sequências de três tiros, após o que atiravam as pistolas, aparentemente agora tornadas inúteis, para o monte de lixo.
sentiu um toque na perna esquerda e contraiu-a reflexivamente.
um rapaz de idade incerta olhava-o com intensidade, numa expressão que talvez pudesse ser considerada como sorridente. ele associava aquele tipo de rosto à mendicidade de esferográficas no norte de áfrica...
oferecia-lhe várias pistolas, de várias cores brilhantes. assim a curta distância estes objectos continuavam desprovidos de qualquer aspecto que se associasse a algo mortífero. na mão esquerda o rapaz exibia vários conjuntos de três pilhas AA, embrulhados em plástico transparente. a sua incompreensão da situação fez com que o rapaz abrisse um destes cartuchos, retirasse as pilhas e as colocasse na coronha de uma das pistolas, coisa que fez com uma rapidez de movimentos impressionante. despejou este estranho carregador na direcção da praia, fazendo levantar pequenas porções de areia cinzenta a poucos centímetros dos pés de uma mulher que se dirigia para o muro.
impassivelmente, o rapaz introduz mais pilhas na coronha de outra pistola. segura-a pelo cano e oferece-lha.
tomou-a na mão. "muito leve, como um brinquedo", pensou.
sem qualquer hesitação retirou, não sem esforço, uma moeda do bolso das calças. era, tanto quanto ele poderia supor, uma antiga moeda de prata, muito fina, de cunhagem muito irregular. atirou-a ao rapaz, que, de imediato lhe entregou três pistolas, atadas com um arame.
- o que é que se há-de fazer...? - disse, com ar abatido, o homem de bigode.
encontrava-se ainda a avaliar a inacreditável leveza da arma, enquanto segurava as restantes armas, igualmente leves e inverosímeis, na outra mão. observava com interesse o reflexo do seu rosto naquele objecto quando se apercebeu da presença dela, em contraluz com a praia. aparentemente o carrossel encontrava-se a descrever um lentíssimo processo de rotação, de modo que, agora, tinha a praia cinzenta mesmo à sua frente.
ela tinha vestido um manto leve, preso no ombro esquerdo. um manto de um azul vivo, exactamente igual ao azul dos seus olhos. uns olhos azuis que, sendo muito improváveis em alguém com aquela pele cor de bronze, provocavam, pela beleza do conjunto, um violento efeito em quem os pudesse ver. toda a sua atenção, todo o seu interesse, toda a sua vida estavam agora no rosto levemente sorridente, profundamente distante, daquela mulher. o homem de bigode articulou meia frase - "menos mal. não tiveste que esperar muito tempo para... - e foi abruptamente interrompido pelo disparo à queima-roupa que o atingiu na face esquerda.
duas coisas o surpreenderam em igual medida: a actuação da pistola, tão silenciosa quanto eficaz: o homem do bigode, agora só com meio bigode, jazia numa crescente poça lamacenta de sangue. tinha em falta toda a metade do lado esquerdo da cabeça, e o desconhecimento absoluto do motivo que o levou a disparar. contra um ser humano, um desconhecido.
ela, por outro lado, não se lhe afigurava como uma desconhecida. mas também não era conhecida. um desconhecimento conhecido - pensou, enquanto tomava consciência dos dois projécteis ainda alojados no carregador da pistola-brinquedo para levar a sério.
a imperceptível rotação do carrossel e as cada vez mais notórias dificuldades de movimentação faziam com que a tentativa de apontar a pistola directamente ao peito dela fosse muito dificultada. no entanto, ele viu o seu braço, lentamente, a deslocar-se para esse efeito. ela parecia avaliar com rigor a situação pois, lentamente, muito lentamente, libertou o manto do ombro e estava agora, no momento em que ele fazia mira, completamente nua. tinha um diamante acima do lábio superior, e foi este o penúltimo pensamento dele, ao ser atirado para fora do carrossel num movimento repentino, como se tivesse levado um coice.
enquanto sentia um borbulhar associado à sua débil respiração pensou - "talvez não seja bem arles."
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