havia mais de dois meses que usava uma velha vela de ignição danificada como chumbada. tinha gosto nisso. podia associar duas ideias que lhe eram gratas, a reciclagem e a possibilidade de de reflexão que a pesca lhe proporcionava.
enquanto colocava uma tira de haxixe-rosa no anzol pensava em T. apaixonara-se por ela no exacto momento em que o vento definiu os contornos do seu corpo na fina túnica que ela usava para matar a cal.
com um impuls do corpo inteiro, os seus braços impulsionaram a cana, atirando a chumbada new-age, o anzol com o engodo e o bilhete premiado de lotaria felizmente para além das águas gelatinosas da baía. o alvo, a cabina telefónica junto ao matadouro, foi atingido com perícia.
as suas dúvidas quanto à reciprocidade dos sentimentos de T encontraram eco no olhar meio-vago que o maioral das éguas voltou para o farol de esferovite.
T nunca falara. T nunca falava. T sabia o valor das palavras e ele compreendia-a.
foi, por isso, com um sentimento de quase náusea que ouvira, pela primeira vez e filtrada pelo telemóvel, a voz de T, pedindo-lhe que regressasse a casa a fim de lhe aliviar o garrote.
quando pressionou o botão de ligação do motor do carreto já tinha tomado uma decisão: iria acabar tudo.
num gesto brusco, atirou todo o material da pesca ao mar, até o saco do aspirador novo que comprara dias antes.
dirigindo-se à fada-do-porto disse "já está".
partiu.