2009/02/26

T, parte III

disse: "é por conta da empresa" e despediu o quadritaxi. fez um gesto amplo com o braço direito como que a limpar um vidro invisível e a porta do átrio abriu-se.
enquanto subia no elevador admirou a fivela do seu cinto, um admirável trabalho em ferro-forjado. reparou que ainda permaneciam restos de sangue nesse brilhante e peculiar objecto. pensou que estava a perder faculdades com a idade, não obstante se considerar ainda "bem". afinal, nenhum dos seus amigos de infância tinha dentes já... "malditos rituais", pensou.
tirou uma pena de pombo do colarinho e, observando-a, apercebeu-se dos gritos. não logo, imediatamente, mas mais pelos movimentos nervosos do puma-de-elevador, no outro vértice do espaço.
a porta, ao abrir-se, revelou-lhe a causa daquelas emissões agudíssimas: T estava de pé, os olhos brancos, gritando a plenos pulmões uma lâmina serrilhada de voz, um grito material e contínuo. todo o peso do corpo suspenso na tira de lã amarela amarrada ao antebraço direito. na mão esquerda a ampulheta. a eterna ampulheta a que T insistia em chamar clepsidra, insistência que o visava a ele e somente a ele e por razão dupla: tinha tido contacto com o termo nas abomináveis saunas mistas das montanhas (ele achava que deveriam ser pura e simplesmente banidas. os animais abatidos) e tinha uma ignorância ostensiva em relação àquilo a que chamava "erudição de sangue frio".
"não, desta vez não...", não iria fazer o jogo dela. apenas disse: "não vim assim que pude. vim apenas quando me ligaste..."
T permaneceu naquela posição e no grito constante durante alguns minutos, apenas se mexendo para virar a ampulheta. a cada viragem a parede que servia de cenário a toda a cena (no ponto de vista dele) mudava de cor.
"melhorou" pensou... "verde-pálido"... "está a regressar"...
olhou para a extremidade do corredor, para a porta de acesso à "casa" que lhe coube em herança. coube por omissão, os irmãos não compareceram na cerimónia improvisada no mercado fronteiro ao montinho. ele sabia que todos tinham criado raízes (literalmente) noutras paragens, mas achou por bem omitir o facto. imaginou, tentou imaginar, como estaria o espaço que, antes, servira de cozinha e que era usado como área de lazer. "o plástico custa a limpar. vou ter que chamar alguém..."
a sua atenção foi subitamente desviada para T... tudo indicava que se preparava para falar. o grito era menos agressivo, menos cortante e os olhos fecharam-se.

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