2007/04/27

claridade

o que aconteceria se alguém que passou a sua vida a alimentar os seus demónios deixasse simplesmente, num acto mais temerário do que outra coisa, de o fazer?
e se esses mesmos demónios, em vez de não se voltarem para a mão que já os não alimenta, de modo igualmente simples, morressem à míngua, não exalando mais do que um ligeiríssimo ronco, quase imperceptível?

e se, como alguns sábios afirmam, o vazamento dos olhos fosse um pré-requisito para a visão pura?

e se se pudesse sentir orgulho dos actos (conscientemente) mais estúpidos de toda uma existência?

parábola do oásis:
certo homem ocupava os seus dias prescutando o horizonte, tentando resisitir ao apelo do deserto... melhor:

parábola da ilha:
certo homem ocupava os seus dias prescutando o horizonte, tentando resisitir ao apelo do mar. julgava-se incapaz de, por simples determinação da sua vontade, empreender a grande travessia, abalançar-se ao grande salto. procurava, em vão, uma qualquer vela, qualquer coluna de fumo, qualquer ponto ínfimo que lhe sugerisse a possibilidade de uma qualquer possibilidade...
por várias vezes, como num exercício de suicídio na tentativa, se viu forçado a regressar ao ponto de partida (muitos anos mais tarde recordará esta expressão - ponto de partida - com um quase imperceptível sorriso).
naquele dia, na hora em que o seu desespero se aproximava do zénite, a sua atenção ficou presa àquele espectro indistinto que se fundia nas ondas de calor reflectidas pela areia dunar. enquanto se afastava da sombra da tamareira a sua certeza de que alguém, talvez beduíno, se aproximava do sítio onde se encontrava aumentava proporcionalmente à sua incredulidade. abeirou-se do poço (único ponto de água num redor de centenas de milhas náuticas) e passou as mãos molhadas pelo rosto sem deixar de acompanhar com o olhar o balanço ritmado do dromedário engalanado que transportava a sereia que já o saudava agora com um aceno amistoso.
quase uma hora depois, uma hora de transe asfixiante, a sereia encontra-se em frente ao homem e falou-lhe:
- isto é aqui - começou - e o agora é sempre num aqui. - os seus dois dentes de ouro faiscavam ao sol acentuando a serenidade do sorriso e a força das palavras. - cheers.
sem qualquer indicação perceptível por parte da sereia, o dromedário tomou o caminho inverso e desapareceu quase logo após a linha de rebentação.
o homem agradeceu-lhe e nunca mais olhou para o mar da mesma forma, não mais desejou que uma vela ou vapor se revelasse na interminavel linha de dunas...

6 comentários:

Anónimo disse...

tu és um parabolador!...

me disse...

tu estás a gozar comigo?

Anónimo disse...

não me lembro de alguma vez ter gozado contigo! :)

me disse...

não me digas que não eras tu!!!
isto um gajo com os copos nunca tem a certeza de nada...

Anónimo disse...

este é, sem sombra de dúvida, o melhor registo do teu logradouro!!
beijo

me disse...

ó alice... não sei não. continuo a gostar muito dos "apontamentos para um western-tragédia".
beijo grande